Ainda não é tarde demais, camaradas, mas precisamos de muito mais

Intervenção feita na V Conferência do Bloco, Porto, 26.10.2024 Por Carlos Carujo

1- Saímos à rua. Encontramo-nos. Reivindicamos mudanças urgentes. E sentimo-nos bem com isso. Gritamos com garra que somos anticapitalistas. A acompanhar-nos, uma grande faixa diz que

“radical é o salário não dar para a casa”. E sentimos que talvez algo não bata certo aqui. Lembramo-nos das vezes que vimos num mupi ou ouvimos vindo do nosso lado que radical é afinal é mal e que radicais são os outros, como se fora um insulto.

Os signos contraditórios têm, é sabido, a vantagem de, querendo, cada pessoa neles encontrar o que precisa. Mas as desvantagens são muito mais.

Podia ser só um pormenor. Mas diz muito sobre o que o Bloco tem sido. A compartimentação dos discursos e das práticas, a performance de uma pretensa responsabilidade e competência, o fetichismo do mediatismo, os códigos dos outros que seguimos enquanto continuamos a dança.

E no entanto… E no entanto sabemos que não podemos ser anticapitalistas sem sermos radicais. Que não podemos dizer-nos anticapitalistas só às horas certas, nas manifestações. Nunca no Parlamento. Nem nas televisões. Que não são lugares para essas coisas…

2- Fazemos grandes eventos de discussão. Encontramo-nos. Falamos entre nós mais uma vez das causas que interessam. Criticamos a direita e o social liberalismo do PS. Há um momento de televisão, não podia deixar de ser. Re-asseguramo-nos de que estamos certos. E sentimo-nos bem com isso. Mas pelo meio há sempre algo que destoa do sentimento de festa e de conforto. Há quem seja chato o suficiente para questionar. E ora se constroem inimigos internos cuja crítica acabaria perversamente por ajudar os nossos adversários políticos. Ora se desvaloriza ou caricatura. De qualquer forma, arruma-se a coisa com uma boutade e segue-se. Show most go on. Ouve-se que “a democracia é mesmo assim”. Mas será que se escuta?

Há quem tenha falado em luta de classes, quem dissesse que era preciso aprofundar o programa, quem insistisse ano após ano que seria necessária formação política e armar-nos para uma luta contra-hegemónica em que saímos sempre a perder…

“Esquerdistas, caluniadores, que o programa é tão bom e tão compostinho, retrógrados cheios de preconceitos do passado, que não compreendem que isto da política agora é tudo hig tech…”

Um dia, como se fosse hoje, tudo muda sem nada mudar. Alguém escreve, alguém diz: agora é que vamos refazer o programa e fazer formação e tudo. Aplaude-se. Que era isto mesmo que era preciso. Brilhante descoberta ou crise de meia idade, pouco importa… não cabe dizer “we told you so” mais vale um “antes tarde do que nunca”. Que já se faz tarde… e é sobretudo preciso ver como isto se materializa e se tudo não fica esquecido na avalanche da política “imediática” e no peso das rotinas.

3- Militamos. Encontramo-nos. E é bom que nos sintamos bem com isso. Que a política não tem de ser sacrifício. Mas também é necessário que sintamos insatisfação porque a política vertical, fechada nos gabinetes, institucionalizada, não nos serve como horizonte emancipatório. É bom que ousemos exigir que a democracia interna seja bem mais intensa, que as bases podem ser mesmo quem mais ordena, que não tem de nos chegar sempre tudo já ditado. É importante que saibamos divergir e que as direções saibam reconhecer os seus erros porque nem sempre têm razão e até falham muito. Lembram-se da última vez que o admitiram?

Por outro lado, há sempre quem descubra anos depois de integrar as mais altas esferas do partido que há problemas de mobilização e democracia interna. Antes tarde do que nunca. Mas não vale a pena dizer “we told you so…” Mais vale dizer: “antes tarde do que nunca”. Que já se faz tarde…

4- E era sobre isso que queria falar… Desse sentimento de que já se faz tarde. Crise ambiental profunda, crescimento da extrema-direita e da política do ódio conservadora, guerra, imperialismos agressivos, desigualdade neoliberal entranhada nas nossas vidas, precariedade…

Não nos sentimos bem com ele. Mas a inquietação pode ser uma arma e a urgência um grito de guerra.

Para isso, não é novidade, é preciso identidade anticapitalista, consciência de classe, pensamento contra-hegemónico, radicalidade. Já se diz… mas faça-se.

Já se faz tarde e é preciso mudar por dentro para transformar por fora. Ainda não é tarde demais, camaradas, mas precisamos de muito mais.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *