
Alguns mitos bloquistas ruíram com o resultado eleitoral recente. Neste texto olho para eles, analiso as justificações para esta derrocada eleitoral e dou a minha contribuição sobre o que acho que não se deve fazer a partir daqui. Por Carlos Carujo.
1-Alguns mitos eleitorais que se desfizeram
A estratégia do Bloco de Esquerda foi sendo construída à volta de alguns mitos internos sobre eleições que não aguentaram a prova da realidade nas últimas eleições.
O primeiro era que, por debaixo das oscilações notórias depois de uma fase inicial de crescimento constante, o Bloco tinha algo como uma base eleitoral estável que o salvaguardaria de conjunturas mais desfavoráveis. Servia para tranquilizar que, fosse qual fosse a guinada tática que se fizesse, haveria uma rede de segurança que impediria uma queda mais grave.
O segundo era o chavão de que o Bloco “fala para a maioria”. Servia como justificação para reduzir o discurso a uma retórica taticista à volta de uma agenda de curto prazo mas sobretudo para, sob pressão da hegemonia dominante, o “moderar”, procurando assim ao mesmo tempo adaptar-se a critérios de “credibilidade” ditados por esta e conjurar os demónios do que seria um “radicalismo” estéril ou um “acantonamento” numa linguagem ideológica de nicho, à boleia de um distanciamento de um passado que faz parte de um certo imaginário anti-esquerdista auto-complacente.
O terceiro era a presunção de que os zangados da política não votam e que por isso não era prioritário falar para eles e com eles, estando portanto a disputa eleitoral reduzida à procura de conquista de votos que já estavam “no interior do circuito eleitoral”, sobretudo do Partido Socialista.
O colapso da votação do Bloco pulverizou estas certezas, tirando a terceira a qual, aliás, já tinha sido desmentida pela votação da extrema-direita nas anteriores eleições.
Assim, pelo contrário, ficou à mostra que (1) o Bloco não conseguiu criar uma base sólida e ficou dependente das flutuações dos ciclos eleitorais. Ou seja, em mais de 25 anos, com todas as dificuldades que isto naturalmente implicava mas também com condições de visibilidade e organização que a esquerda anti-capitalista não tinha tido no período entre a ressaca do 25 de Abril de 1974 e antes da criação do Bloco, este falhou não só em fidelizar essa base eleitoral alargada mas sobretudo em construir a base de apoio popular que fosse para além das eleições, não conseguiu politizar o descontentamento social, formar contra-hegemonia e fortalecer um campo assumidamente anticapitalista que é a matriz definidora do partido.
Isto revela ainda que, ao contrário do que afirmava, o partido que se gabava de falar para “a maioria” contra os acantonamentos estava na realidade ele próprio (2) acantonado discursivamente. O nicho com o qual foi conseguindo dialogar era o de uma certa esquerda já conscientemente de esquerda, nomeadamente os setores críticos das sucessivas direitizações do PS. Parecia acreditar-se, com base numa análise antiga, que o processo de social-liberalização das social-democracias europeias e as suas incongruências com os mínimos de esquerda quando no governo estabeleceriam aí um potencial de crescimento seguro. Só que a orientação de disputar sobretudo este eleitorado e o medo permanente de parecer “ideológico”, “radical” ou “desatualizado” que a acompanhava implicou não a sua desejada deslocação à esquerda, mas a criação de uma forma política que fez com que a ação política do Bloco acabasse por ser vista como eficaz apenas e só num contexto limitado de “puxar o PS à esquerda” (e não como se desejaria de ser alternativa a este) com todas as limitações que isso implicou.
Ao mesmo tempo, o Bloco menosprezou alguns dos setores populares mais descontentes partindo do pressuposto de que eram setores abstencionistas e essencialmente “anti-política” não disponíveis para o voto e, por isso, tudo menos uma prioridade. Claro que a politização à esquerda a contra-corrente é um trabalho árduo e que a mobilização do ressentimento pela extrema-direita é bem mais fácil do que isso. E claro que mais difícil se torna dialogar com estes setores quando se é percecionado como estando permanentemente na defensiva a justificar sobre cada proposta que afinal não é tão radical quanto isso. Mas tal não era um fado e esse trabalho podia ter sido um caminho do qual não se desistisse.
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Estes três mitos surgiam misturados, convergiam numa aposta estratégica e iam-se alimentando de resultados eleitorais que seriam supostamente a medida do sucesso do partido. Por detrás deles, havia uma direção que se mostrava muito eficaz no mundo do mediatismo, centrando a atividade política no domínio parlamentar e cultora afincada da chamada “hegemonia partilhada” entre duas grandes tendências internas que pretendiam ocupar o espaço todo do bloquismo e menorizar ou ostracizar quem não lhes fosse afeto.
Para além disso, havia um funcionamento partidário e uma estrutura de quadros profissionais dependentes do financiamento público, ou seja, do resultado das eleições, e uma estrutura militante com a consciência de que pouco pesava nas decisões mais importantes da vida do partido.
Talvez a derrota eleitoral tenha abalado também algumas das certezas organizativas que foram a fonte destes mitos. E possamos fazer da fraqueza força e ver que há uma possibilidade de começar de novo.
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2-O que nos diz uma derrota tão pesada em tão pouco tempo?
São precisas explicações profundas e de longo prazo para a derrocada eleitoral do Bloco de Esquerda. São muitíssimo importantes para perceber a trajetória que estava em curso e o ponto a que se chegou. Mas também são precisas explicações sobre o que aconteceu de um ano para o outro para o Bloco ter perdido 163.103 votos, ou seja, para ter perdido mais votos do que os que teve (119.211), alcançando o pior resultado da história. Abaixo mesmo dos 131.840 iniciais, quando o partido trazia a imagem da “coligação” de “extrema-esquerda”, quando não tinha quase verbas nem funcionários, quando a exposição mediática era incomensuravelmente menor.
Assim, apesar de ficar longe de esgotar o que seja preciso pensar sobre este tema, há que colocar uma questão: porque é que o Bloco perdeu tantos votos em tão pouco tempo? Até porque esta permite-nos olhar de outra forma para algumas das explicações parciais que têm vindo a ser avançadas para o resultado eleitoral.
Antes de mais, dois aspetos “externos”.
A culpa é da extrema-direita? Nos últimos anos muita coisa mudou politicamente. No mundo e no país. O cenário é cada vez mais preocupante a vários níveis, o campo está muito inclinado à direita com um ultra-conservadorismo altamente agressivo e a esquerda em geral está na defensiva. A extrema-direita tem as costas largas e já ouvi quem lhe lançasse culpas sobre o que aconteceu ao Bloco nas passadas legislativas. Mas se há que compreender o fenómeno, é preciso não usá-lo para sacudir a água do capote. O crescimento da extrema-direita não explica tudo, nem explica muito se partirmos do ponto de vista do que se passou neste curto prazo. A extrema-direita não avançou assim tanto num ano, não avançou na maior parte à custa do Bloco e os seus avanços, se bem que num quadro geral de recuo à esquerda, não foram sentidos da mesma forma em todos os partidos.
A culpa é do Livre?O resultado deste partido é, aliás, uma boa prova de que a derrocada não pode ser explicada simplesmente invocando a extrema-direita. É verdade que o Bloco se deparou com concorrência eleitoral de um partido que parece querer mesmo fervorosamente “puxar o PS à esquerda”, de carácter abertamente centrista e sem a carga “radical” que alguns colam ao Bloco, já lá vamos, que opera bem no campo da suposta “modernidade” da proposta, que conta com a relativa novidade que o Bloco já não pode reivindicar e com muito boa imprensa, etc.
É indiscutível que há uma disputa de votos (e não só) entre os dois projetos e que o Bloco desceu e que o Livre subiu. Mas subiu 52.597 votos. O que quer dizer que nem partindo do princípio errado de que todos os votos do Bloco teriam passado para o Livre, isto explicaria o essencial porque só diria respeito a menos de um terço do que o Bloco perdeu.
Por outro lado, ainda que fosse verdade que todos estes votos se deslocaram neste sentido, continuaria ainda por explicar, para além de um “mérito” do Livre em captá-los, o que teria sido o “demérito” do Bloco para os perder. E é aí que teremos de ir. Ou seja, para onde queria olhar era mesmo para as justificações centradas no próprio partido que têm sido avançadas.
A culpa é da Mariana?A disputa eleitoral é personalizada, evidentemente, e isso conta. Tem um lado de emocionalidade, de ligação empática, de construção de carisma, que escapa às análises racionalistas sobre táticas e estratégias. Mas as explicações obsessivamente de carácter, de imagem etc. tendem a ser limitativas. E, neste caso, explicações sobre a imagem da porta-voz do Bloco chocam com a evidência de que, nas últimas eleições, ela já tinha dado a cara e com resultados diferentes. Então o que teria mudado num ano? Tentou ser passada a narrativa de que ela é vista como “demasiado radical”, já lá vamos, mas até bem mais nas últimas eleições. Não anda longe do que a dada altura foi dito sobre os anteriores coordenadores, sendo um leitmotiv do comentarismo luso cuja adesão mais alargada está longe de estar provada. E, de um ano para o outro, isso não mudou.
A culpa é do wokismo? Parte da direita di-lo do ponto de vista de uma “guerra cultural” que dá por vencida. Não é a isso que me quero referir, mas sim à tendência crescente numa certa esquerda para comprar essa teoria de que há uma rejeição da esquerda por ser woke, a nível mundial e do Bloco neste caso por ser um “partido de causas” ou de movimentos, dizia-se antes do termo acusatório ter ganho proeminência. Nessa crítica, que chegou até a partes do Bloco, há uma cedência ao conservadorismo misturada com a ilusão de que abandonando estas causas se entrará numa sintonia mágica com o povo.
Mas esta culpabilização woke também tem dificuldade em explicar o que se passou. Em primeiro lugar, a imagem woke do Bloco já seria a mesma nas eleições passadas, a rejeição não terá afetado assim tanta gente tão de repente e se há alguma coisa a dizer desta campanha eleitoral do Bloco neste aspeto é que foi “woke de menos”. Ou seja, essa carga não estava presente nas três mensagens centrais transmitidas até à exaustão pelo partido durante esse período, não houve “exageros” (um termo que há quem use para não ir tão longe quanto à rejeição destas causas, mas que fica sempre por explicar o que seja). E deu no que deu.
Em segundo lugar, o “voto woke”, querendo com esta expressão infeliz referir o voto assumidamente feminista, LGTBQI+, anti-racista não é tão pouco quanto o voto no Bloco e este está presente noutros partidos e fortemente.
Pelo que, mudando a perspetiva, o problema será compreender porque é que o Bloco não atraiu suficiente voto anti-racista ou de pessoas racializadas, por exemplo, mais do que se preocupar que o anti-racismo ou as posições sobre imigração “roubem votos”.
Isto, obviamente, assumindo erradamente que a questão dos cálculos imaginários de perdas e ganhos de votos se devesse colocar acima do que é substantivo que é a defesa destas causas que são o que a esquerda tem de ser. Particularmente agora, quando o poder da extrema-direita ameaça tanta gente que não podemos deixar desprotegida.
A culpa é das “campanhas mediáticas” contra o partido?O Bloco não costumava explicar as suas derrotas eleitorais desta forma, mas esta explicação já veio também a jogo. Não se podendo dizer que o Bloco tenha tido imprensa positiva nos últimos tempos, não deixa de ser verdade que já viveu períodos mais agrestes na cobertura mediática. Não se pode dizer com propriedade que tenha sido acossado e, por exemplo, na campanha propriamente dita não se viram tantos ataques até quanto nas eleições anteriores, assistindo-se mais a uma menorização do partido a partir dos resultados das sondagens. Os ataques nas redes sociais, por outro lado, terão causado danos, mas também não são de hoje, e são uma questão diferente.
A culpa é da radicalidade a mais? A explicação é tão velha quanto o Bloco. Antes era enunciada de outra forma: o Bloco teria crescido por ser esse “partido de causas” mas, “esgotadas” estas, tinha um limite por ser, por debaixo delas, ou “partido de protesto” numas formulações ou um “partido radical” noutras. Estava condenado assim a moderar-se, a adaptar-se ao sistema ou à marginalidade política.
A narrativa da radicalidade foi ressurgindo com mais força em alguns momentos, mais recentemente com o fim da geringonça de uma forma e com a mudança de coordenadora da Comissão Política de outra. Só que é preciso ter consciência que, tal como a questão das “minuciosas” análises sobre a eficiência dos porta-vozes e dos anátemas lançados contra eles/as a dada altura, é algo que é repetido à exaustão pelos “comentadores políticos” e pelos “políticos comentadores” de acordo com a sua agenda. É uma retórica de ataque que terá os seus efeitos na perceção do que é o partido, mas que estão longe de serem determinantes, apesar de serem interiorizados até por militantes do Bloco.
Essa repetição permanente da crítica da radicalidade, mesmo nos momentos mais “moderados”, levanta a questão de se alguma vez quem a coloca ficaria satisfeito com a moderação requerida ao partido. A não ser que o Bloco deixasse de ser o que é. Porque um partido anticapitalista não radical é a quadratura do círculo. E o que é radical para a maior parte dos que propagandeiam esta tese não é sequer o “estilo” assumido na comunicação. É a própria existência de um projeto político como o Bloco de Esquerda.
No meio disto tudo, fica sempre por saber: em que tem sido o Bloco assim tão radical se na esmagadora maioria das propostas que apresenta argumenta que há outros países capitalistas e não governados por nenhuma esquerda radical onde se aplicam e se esforça por mostrar que há partidos sociais-democratas que as defendem ou que não implicam mudanças substanciais? E, repetindo, à exaustão o mote deste ponto: num ano em que é que o Bloco se tornou mais radical ou em que medida essa perceção de que o fosse avançou?
Isto já para não falar no sobrestimar do peso da acusação que fica a nu com a suposta radicalidade do Chega. Este pode ser definido mais propriamente como um partido que condensa o pior do sistema em que vivemos, mas que se apresenta e é representado como um partido radical, que quer “mudar o sistema”. Nada disto lhe “rouba” votos e, antes pelo contrário: é um dos seus maiores atrativos para muitas pessoas. Para algumas análises, a radicalidade seria a falência do Bloco mas a riqueza do Chega.
A culpa foi da campanha? As sondagens já indicavam que o Bloco partia de um ponto baixo mas vale a pena olhar para a campanha, em que este introduziu três novidades, baseadas num copy paste assumido da tática eleitoral recente do Die Linke alemão. A campanha porta a porta, os fundadores como cabeças de lista em alguns círculos e centrar a campanha em três medidas apenas, repetidas à exaustão.
Deixando de lado os fundadores, cujo efeito eleitoral particular não se revelou significativo. Vamos aos outros dois elementos.
O porta a porta. Seria difícil culpar este elemento de campanha pela derrota eleitoral. Se não teve muito alcance, dados os timings e as forças militantes em jogo, mal não fez certamente. E se a experiência de um contacto direto mais pessoalizado não mudou o jogo como não teria dimensão para o fazer, pelo menos terá tido o efeito de mostrar uma outra forma de fazer a campanha que não o tarefismo de colar cartazes, a passividade de bater palmas e agitar bandeiras em comícios ou a “impessoalidade” de uma distribuição massiva de comunicados. As experiências resultantes disto parecem ter sido maioritariamente positivas, mas é igualmente preciso sublinhar que nem o contacto mais direto se esgota no porta a porta nem ele deve ser limitado aos calendários eleitorais.
As três medidas. Terão sido responsáveis ou terão desajudado o resultado final das eleições para o Bloco? Tetos às rendas, taxar os ricos e trabalho por turnos são sentidas de forma muito diferente. Não sendo aqui o espaço para uma análise detalhada de cada uma delas, vou permanecer no ângulo de como têm sido usadas para explicar o resultado eleitoral.
Há quem tenha falado num “distanciamento” das preocupações que deveriam abordar. Por exemplo, sobre o tema da habitação, a proposta de tetos às rendas pretendia ser de proximidade para “responder agora à crise da habitação e não daqui a dez anos”. Mas soava a um mecanismo complexo e pouco intuitivo na forma como funcionaria. Marcou alguma coisa do debate eleitoral mas parece ter empancado na disputa estéril: isso não funcionou aqui ou funcionou ali.
Há quem tenha falado num “afunilamento”. Apesar da campanha não ter sido só isso, partindo-se do princípio que se seria muito pouco escutado mas eleições, optou-se por dizer “de menos”. A escolha de três temas abordados parcialmente deixa de lado muito mesmo. Por exemplo, a proposta laboral de melhorar a vida de quem trabalha por turnos era sem dúvida positiva e pegou numa bem-sucedida campanha de recolha de assinaturas. Mas, apesar de ser uma questão que afeta em profundidade muitos trabalhadores/as, outros/as podem arrumá-la dizendo que é questão alheia, e que continuava muito por dizer sobre questões do mundo do trabalho.
Há algum fundo de razão a explorar neste tipo de críticas, se bem que convém não exagerar o seu poder explicativo.
Há quem tenha falado numa “radicalidade” das propostas (voltamos continuamente ao mesmo). Só que nem as propostas eram “demasiado radicais”, não implicando sequer reformas profundas ou estruturais nos seus setores, nem julgo que assim terão sido compreendidas. Como já referi, a justificação permanente destas, como de tantas medidas do Bloco, tinha esse fundo defensivo: elas não são radicais. A proposta que foi tomada como representativa do que seria mais radical, “taxar os ricos”, também soa a distante (podendo haver quem questionasse “em que melhora a minha vida?”, apesar de haver muito boas respostas para isso…) e não é de todo radical. Quanto muito seria vaga sobre quem são os ricos que se vão taxar, isto para quem se ficasse por esta formulação e conseguisse evitar a sua explicação detalhada.
Mas sobretudo o que marcou o destino destas propostas, para além da legitimidade das críticas à sua “afinação” com a realidade e com os anseios dos/as trabalhadores/as, terá sido o pano de fundo em que se apresentaram: um quadro em que as pessoas não acreditavam na possibilidade de as concretizar porque estas precisavam de um PS em primeiro lugar ganhador e em segundo lugar dialogante sobre elas para andar. Porque é preciso não esquecer que a derrocada eleitoral se dá paralelamente à do PS, que teve o terceiro pior resultado de sempre, só acima de 1985 (fenómeno PRD) e 1987 (maioria absoluta de Cavaco). Isto não terá acontecido por acaso e é uma das chaves de leitura fundamentais para estas eleições.
A culpa foi do caso das “grávidas”? Tirando todos estes fatores, há que olhar para outra coisa que não pode ser o elefante na sala do balanço eleitoral e cujo peso não deve ser menosprezado: o caso do despedimento das mães que estavam a amamentar. Fazendo mais uma vez o exercício (ingrato) de abstração do essencial, e o essencial aqui são as pessoas envolvidas claro e a seguir a política do Bloco sobre profissionalização, funcionários, contratos etc., foquemo-nos nas justificações e perceções sobre o que se passou.
Depois de uma primeira resposta em que se parecia pensar que bastava gritar fake news (ou “campanha anti-Bloco”) para o fazer desaparecer, o caso foi gerido a partir de uma explicação ambígua e impercetível publicamente de que tinha havido um despedimento mas tinha sido feito um contrato de prolongamento do contrato que tinha sido terminado no qual estas trabalhadoras tinham ficado a ganhar sem trabalhar e afinal até tinham ficado a ganhar mais do que aquilo a que teriam direito se lhes tivesse sido paga uma indemnização pela cessação do primeiro contrato do qual tinham sido despedidas e pelo qual não podiam ser despedidas porque ainda estavam a amamentar (ou algo parecido com isto, que a explicação é mesmo muito difícil de formular).
Do conjunto de explicações tudo foi ficando reduzido ao “tinha de ser” e, por último, ao “foi há dois anos” e “cumprimos a lei”. Foram estas duas aliás, ao que me recordo, as justificações dadas mesmo na reta derradeira da campanha num dos programas mais vistos da televisão portuguesa, o do comediante Ricardo Araújo Pereira. Tudo demasiado pouco. E a perceção gerada não só na “opinião pública” mais longínqua, mas também em apoiantes de longa data foi, no mínimo, de falta de empatia ou de incongruência entre o defendido e o feito “em casa”. Nada a que “cumprimos a lei” conseguisse de todo responder. E para um partido como o Bloco isso poderia revelar-se fatal. Mas, mais uma vez, é precisa precaução na hora de destacar qualquer uma destas causas.
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Estes comentários são apenas notas indicativas que pretendem sublinhar que é preciso afastar explicações fáceis que pouco explicam e prevenir que certezas instrumentais ad hoc se tornem absolutas. Será importante uma análise bem mais cuidada para identificar erros e para não voltar a cometer os mesmos. E, desde já, é preciso que essas justificações não se transformem em desculpas e estas não se tornem num processo defensivo do status quo. E é sobre isto, sobre o que não se deve fazer para já, que gostaria de falar um pouco para terminar.
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3- Depois disto, o que não se deve fazer…
– Resumir todo o problema ao Bloco ou à sua direção. Sim, o Bloco cometeu erros estratégicos e tem muitos problemas de funcionamento. Sim, a sua direção (e a maioria que a suporta) tem de os perceber, assumir responsabilidades, procurar formas de emendar o que seja emendável. Do lado de dentro, repito, é importante que não se culpe o árbitro ou o campo estar inclinado e não se utilizem os problemas de fundo em que a esquerda está para meter a cabeça na areia.
Mas do lado de fora do Bloco é importante não assobiar para o lado, não se limitar a culpar o Bloco pelas suas falhas numa deriva revanchista ou com um certo prazer sádico de ver o outro falhar.
Engana-se quem queira utilizar o contexto para se desculpar das suas responsabilidades, mas engana-se também quem o minimize para maximizar as culpas de outros e não perceba a gravidade do momento para todo o espaço político da esquerda em geral e da esquerda anti-capitalista em particular.
A derrota a que assistimos não se limita aos caminhos assumidos pelo Bloco de Esquerda, tem traços estruturantes e internacionais para os quais temos de olhar de frente. Mas fica para outra ocasião pensar mais sobre isto.
– Ficar na mesma. É porque a crise é profunda, no Bloco e na esquerda para além dele, que a resposta instintiva de continuar a fazer mais ou menos o mesmo que se fez anteriormente não serve. Os hábitos enraizados não nos vão resolver os problemas deste tempo. Também nada se resolverá se se assumir que é preciso mudar mas depois se acabem por fazer apenas mudanças cosméticas. É importante, por exemplo, que não se caia no erro de acreditar que uma simples mudança de caras transformaria o que tanto que é preciso transformar. O que há que fazer é mais profundo e sistemático que isso.
– Dissolver o anticapitalismo numa sopa sensaborona. Há quem reaja a tudo isto querendo fechar-se em si mesmo e há quem ache que só nos safamos abrindo-nos indiscriminadamente. Há uma pulsão sectária a combater mas há também um fetiche unitário que é preciso evitar. E explico um pouco mais porque esta ideia tem tudo para ser treslida. Um discurso fácil, de muitos anos, culpa a “falta de unidade” por todos os problemas da esquerda. Esta obsessão de unidade, nunca concretizada a cem por cento, dadas as diferenças de projetos políticos, gera desilusão. Reanimado nesta altura, tem tudo para ser uma armadilha que voltará a desiludir quem o cultiva porque as alianças (eleitorais, a maior parte das vezes a conversa da unidade resume-se a isso) nunca serão com toda a esquerda.
Prevenir esta desilusão, não é assim o mesmo de cair no erro da auto-suficiência. Há que deslocar o problema para o situar. Será precisa unidade anti-fascista com setores democráticos alargados. Serão precisos encontros em muitos pontos. Mas o problema que vivemos não se resolve magicamente através de uma coligação eleitoral (que muitas vezes nem soma aquilo que se pretende somar) ou de um acordo entre elites partidárias. É preciso saber criar espaços e momentos de unidade a partir de baixo. Mobilizações populares, campanhas conjuntas, trabalho político. E, com toda a consciência que tenho sido repetitivo sobre isto, digo novamente: não há atalhos para o fazer.
Só mais duas breves notas sobre unidade que ficarão por explicar no essencial. “Unidade” (ou unicidade) por si só não é força. Em muitos lados onde há falta de projetos alternativos à esquerda e há um projeto hegemónico a situação não é melhor do que aqui. Isto para além de continuar a haver a contra-prova da extrema-direita. Nunca houve tantos partidos de extrema-direita no país. E nunca houve tantos votos na extrema-direita no país. Os cálculos simplistas ficam longe de ajudar em problemas complexos.
“Unidade”, por outro lado, não deve ser colocada como um sonho despolitizante. É uma relação de forças. E num caso em que o social-liberalismo continua a ser a força maior “à esquerda”, juntar à esquerda será preciso (em vários pontos, repita-se) mas dissolver não é preciso. Um projeto anti-capitalista não pode ceder as suas bandeiras pois esse recuo não combate a extrema-direita, só desarma a esquerda que é esquerda. Por outro lado, a dissolução abre caminho à extrema-direita para afirmar que o “sistema” está unido contra si, que no fundo são “todos iguais” e sobretudo coíbe o que seria a alternativa de sistema de se afirmar. Mas sobre políticas de alianças, frente unida e etc., também teremos ainda muito que falar noutras ocasiões.
O que leva a duas ideias já indicadas quando estava a rever as explicações sobre os resultados. E sobre as quais vou ser ainda mais repetitivo porque quem aguentou ler até aqui conseguirá aguentar ler só um pouco mais.
– Ter medo de ser o que somos. Esta ideia está ligada com a anterior e com a questão aqui reiterada (porque a tenho visto repetida em vários lados) da radicalidade. Há que não fazer do medo política e não fazer política a medo. O Bloco procurou legitimar-se muitas vezes fugindo dessa imagem de radicalidade. E, sempre que a acusação surge, a reação parece ser de medo. Numa altura como estas, a tendência poderia ser acentuar isso. Mas é o caminho errado. Há que não ter medo. E sobretudo de não ter medo de ser o que somos. E ter coragem de dizer: temos mesmo de mudar tudo.
– Desistir de causas. Outra repetição é esta sobre a tentação de prescindir ou jogar para baixo do tapete um conjunto de causas fundamentais para o Bloco em nome de um pseudo-obreirismo (muitas vezes recém-descoberto). Já falei sobre como se baseia num cálculo errado (como se as esquerdas anti-woke ou a-woke, digamos assim, estivessem a obter resultados maravilhosos em algum lado…). E já disse também que o fundamental está para além do cálculo eleitoral no essencial da política.
Estamos a perder na batalha hegemónica sobre racismo, homofobia, machismo, etc.? Estamos. A solução é calar isso ou “baixar o tom” para que o povo nos “compreenda”? Certamente que não. Durante muitos anos, quem esteve na linha da frente destas causas foi apresentado como lunático. Não havia racismo, a sociedade portuguesa (e o ocidente e o mundo) tinha evoluído, etc. O mesmo se dizia sobre todas as outras “causas”. E continuou a dizer-se enquanto o ultra-conservadorismo crescia por debaixo dos narizes de quem jurava que tal não se passava, que havia apenas uns/umas histéricos/as. Ou não tanto crescia como as suas expressões iam perdendo a vergonha.
Este combate tantas vezes também invisível (ou, melhor, invisibilizado) era, contudo, determinante, como hoje se mostra. E continua a ser. Desistir dele (ou minimizar sabe-se lá como e porquê) neste momento implica uma cedência inaceitável eticamente, o erro político de despreparar o presente e o futuro, deixando que o ultra-conservadorismo prevaleça hegemonicamente e com menos resistência e até uma traição a quem mais precisa que estejamos ao seu lado agora os ataques se intensificam e que o caminho está aberto para que estes piorem.
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Falta o mais importante: pensar o que fazer. Mas para isso haverá tempo.