Construir o Bloco em Comum – Plataformas à XIV Convenção do Bloco de Esquerda

Une-nos o combate por um Bloco radicalmente socialista, irreverente, sem amarras, preparado para enfrentar os monstros dos nossos tempos e vencer a extrema-direita, o liberalismo e o centrão. Une-nos a luta por um Bloco plenamente democrático, construído de baixo para cima, em que a divergência é encarada como a riqueza de um socialismo que se quer policromático. Une-nos a urgência da transformação social e a necessidade de repensar caminhos para o fazer.


1- Um novo tempo dos monstros
O aumento da desigualdade de um capitalismo feroz dominado por novos oligarcas e velhos magnatas, o acentuar do crescimento da extrema-direita e do ultra-conservadorismo em grande parte do mundo e o regresso de Trump à Casa Branca com a sua ofensiva contra os direitos sociais, o genocídio do povo palestiniano e a continuação da invasão da Ucrânia pelo regime fascizante de Putin, os renovados choques entre imperialismos e o fortalecimento dos militarismos, o agravamento da crise climática e a inação dos poderes instituídos, a continuação da política da Europa-fortaleza que empurra incessantemente migrantes para a morte são sintomas mórbidos de um tempo de ameaças inéditas.

Face a elas, o internacionalismo não pode ser uma solidariedade vaga e distante, tem de ser uma tarefa quotidiana. E o Bloco tem de ser o partido da solidariedade sem fronteiras. O combate aos monstros que se perfilam no nosso horizonte disso depende.


2- Face ao colete de forças do euro-liberalismo, uma desobediência consequente
A velha Europa enfrenta tensões no seu interior e vive um declínio enquanto potência económica cujas elites nunca se unificaram. A sua crise de projeto político e a ausência de uma soberania popular que fosse a base da União Europeia são realidades perenes. Mas há mudanças: o pilar da livre circulação perde peso face a um retomar das fronteiras mesmo no interior do espaço Schengen, à medida que, até no centrão político, a retórica anti-imigrantes e o securitarismo avançam e ganha força um novo militarismo europeísta.

De qualquer forma, a arquitetura das instituições europeias e da moeda única mantêm-se ao serviço das classes dominantes dos países mais poderosos, o euro-liberalismo austeritário permanece lei no Tratado Orçamental e o euro continua feito à medida dos interesses das potências do capitalismo centro-europeu, representando um colete de forças para as classes trabalhadoras. Aos seus estados-membros é imposta uma política económica única de tal forma que a implementação de um programa mínimo de governo à esquerda, que incluísse por exemplo nacionalizações de setores essenciais, subidas dos impostos sobre a riqueza ou a reestruturação da dívida pública, implicaria um confronto com as instituições europeias e com os poderes que estão por detrás delas. Será, portanto, preciso desobedecer-lhes. E essa desobediência não pode ser um slogan vazio, agitado numa campanha e esquecido entre tantos outros, já que é o enquadramento básico da própria possibilidade de uma política de esquerda. O Bloco precisa de ser motor de iniciativas de mobilização e debate ao nível continental neste sentido e precisa de clareza na resposta ao garrote permanente de uma moeda única que aprofunda desigualdades entre centro e periferias: devemos bater-nos por alterar as regras do Euro e preparar política e tecnicamente uma saída eventualmente necessária da moeda única e da UE no quadro de um governo de esquerda que apostasse na justiça social contra a euro-chantagem permanente.


3- A direita dos interesses governa, a extrema-direita interesseira está à espreita
O governo de direita é expressão de classe de uma burguesia interessada em continuar um rentismo predatório do Estado, avançar com a privatização na saúde e na Segurança Social e em fazer pender a balança ainda mais em benefício do capital contra o trabalho. É a manutenção da crise na habitação e do desinvestimento no Estado Social. Na sua tentativa de não perder espaço político para a extrema-direita, a direita “tradicional”, em Portugal como na Europa, tem vindo a assumir as suas roupagens, nomeadamente nos temas migratórios.

A extrema-direita, essa, cavalga a onda reacionária internacional, recolhe o apoio de vários setores do patronato e capitaliza com a cobertura mediática de que é objeto, as “perceções” de insegurança alimentadas até pelo centrão, os descontentamentos difusos por anos de erosão do Estado social e a crise dos movimentos emancipatórios.

Por sua vez, a direção atual do PS, que escolhe fazer o seu ajuste de contas com o governo anterior de maioria absoluta do seu partido não por uma diferenciação significativa à esquerda mas precisamente sobre questões migratórias, retomando a retórica da direita, que se juntou a esta para voltar a escancarar as portas aos interesses da especulação imobiliária na lei dos solos e que se mantém agarrada ao social-liberalismo, não faz qualquer caminho de aproximação à esquerda, desmentindo quem nela via algo de diferente ou sonhasse com convergências. Assim, o Bloco enfrenta o desafio simultâneo de juntar forças para resistir à ofensiva de direita, de não se deixar iludir com o canto de sereia do social-liberalismo e de combater determinadamente a extrema-direita.

Esta última prioridade implica que o Bloco se deve esforçar tanto por desfazer a imagem de comprometimento da esquerda com o poder que ficou entranhada depois dos anos da geringonça como os mitos de que os fascismos e ultraliberalismos são alternativas ao sistema, insistindo que são apenas o seu lado mais obscuro. Cabe ao Bloco assumir-se como alternativa transformadora de fundo e recuperar a prática anti-sistema porque sem isso há um espaço político vazio de descontentamento que vai tendencialmente sendo ocupado pela demagogia da extrema-direita.


4- O Bloco das lutas
Depois de várias derrotas eleitorais, o caminho do Bloco não deverá ficar fechado num pequeno grupo de dirigentes e nas rotinas. É preciso abertura e radicalidade, a coragem de inovar e começar de novo num partido-movimento para o qual o anticapitalismo não seja só uma palavra para dias de festa e se traduza permanentemente no concreto da política. Precisamos de um partido menos perdido nos Passos Perdidos, mais achado nas lutas e menos centrado no mediatismo imediatista.

Precisamos de um Bloco com mais dedicação ao apoio dos movimentos e que não ceda à tentação de os controlar, de atropelar as suas decisões, de impor a sua agenda ou à ânsia de fazer “porta- vozes”. Com um diálogo aberto, modesto e crítico. Porque só o movimento das pessoas trabalhadoras, o antirracismo, o feminismo, o movimento LGBTIQ+, o movimento de defesa dos animais, o anticapacitismo dão vida à diversidade que é a nossa matriz. Precisamos ainda de uma esquerda que reflita criticamente também sobre si própria e, por exemplo, trabalhe para colmatar o problema de não ter, nas suas fileiras, uma representatividade real de pessoas racializadas e de etnias marginalizadas. Precisamos de um partido que ouse afirmar-se como o partido das solidariedades, apoiando experiências coletivas capazes de organizar respostas às necessidades mais básicas: saúde, cooperativismo, produção agrícola feita para além do agro-negócio, mercados sem intermediários, coletivos culturais alternativos, grupos que lutam pelo direito à habitação, associações e comissões de moradorxs. Um Bloco que ajude os movimentos a crescer, em vez de procurar crescer neles.


5- Ecossocialismo ou morte
Todos os alarmes críticos já soaram sobre as alterações climáticas. As consequências do desastre ecológico fazem-se agora sentir dramaticamente. Esta bomba-relógio não espera pelos avanços e recuos dos bons e maus fígados dos corredores de poder, nem se desarma com meias-medidas ou com promessas de um capitalismo verde. Não há tempo nem condições para continuar com a política usual. Daí que seja necessário um Bloco em que o ecossocialismo não seja só um discurso bonito, mas que tenha consequências a todos os níveis. Que faça da urgência climática a convocatória decisiva na luta para ultrapassar o capitalismo, um projeto de transformação radical do planeta, que combine a transição energética com a melhoria das condições de vida da maioria da humanidade, que construa a comunidade fora das teias do mercado e novos entendimentos da vida e da nossa relação com os ecossistemas a que pertencemos. Desta forma, a crítica da economia política terá de ser também a crítica do produtivismo, do crescimento pelo crescimento e do mercado enquanto instituição criadora de verdade. A demarcação clara das promessas do “capitalismo verde” tem de ser acompanhada pela defesa das formas de auto-produção, nomeadamente energética, essenciais a uma transição justa.


6- Construir contra-hegemonia
A batalha contra a hegemonia capitalista, nomeadamente nas suas facetas mais agressivas e conservadoras, não pode ser adiada sempre para as calendas gregas. O Bloco não pode pôr a tática acima de tudo. Discussão estratégica e formação política têm de ser prioridades não adiadas pela espuma dos dias. É preciso promover a discussão de alternativas de fundo para a sociedade, que configure uma aprendizagem e crescimento coletivo destemido na crítica das conceções de propriedade privada dos meios de produção ou ao funcionamento do imperialismo como ele existe nos nossos dias. É preciso a esquerda quebrar o seu ciclo de impotência política, sujeita à defesa de mínimos, encontrando as formas de agir politicamente que poderão produzir mais efeitos no momento histórico presente e assumindo a iniciativa política, em vez de se concentrar apenas em reagir às manobras do poder: trazer a jogo a redução radical do tempo de trabalho e o aumento do tempo de férias ou definir limites máximos e mínimos ao rendimento, por exemplo. O desafio do Bloco é abrir portas a novas formas de fazer política e repensar um socialismo do século XXI que recuse a social-democracia e o estalinismo.


7- Uma democracia de alta intensidade
Ao nível interno, o Bloco tem de estar menos centrado num número reduzido de figuras que se perpetuam nos lugares e concentram todas as decisões essenciais sobre a vida do partido. Rotatividade nos órgãos, limitação de mandatos, reafirmação do primado do trabalho coletivo de direção, mais decisões a partir da base, criação de um boletim interno como veículo da diversidade de opiniões, criação de um portal de transparência com informação atualizada sobre as contas do Bloco de Esquerda, informação genérica sobre escalões salariais de funcionários e as declarações de interesses, propriedades e rendimentos de pessoas eleitas e dirigentes bloquistas, reinventar a militância significativa, o Bloco tem de ser mais o partido-movimento que faz a diferença na forma de se organizar e não apenas reproduzir os modelos gastos dos partidos tradicionais. Um partido no qual a diversidade interna não é apresentada como “divisão”, onde não há “inimigos internos”.

Porque só a democracia mobiliza e junta as forças de que necessitamos.


8- O local como motor das transformações sociais
Contando com milhares de militantes espalhados pelo país, o Bloco é bem mais do que a sua direção. O trabalho local deve ser a cara de uma forma de fazer política que marque a diferença, pautada pela democracia participativa, pela procura de unidade à esquerda do PS para resolver problemas concretos e essenciais, pelo encontro com o país das lutas concretas e das esperanças partilhadas que vive para além das instituições, pela criação de dinâmicas organizativas e políticas locais mobilizadoras que vão desenvolvendo coletivos no território, nos locais de trabalho, em escolas e universidades, em vários sectores da sociedade.

Nas candidaturas autárquicas não nos devemos apresentar apenas para levar a bandeira do partido às urnas ou com o objetivo limitado de construir organização à escala municipal. Tal como nos programas que fazemos e nos cargos que exercemos não nos propomos meramente ser bons gestores. Queremos mudar paradigmas políticos autárquicos. Não nos submetemos às lógicas da lei do valor, de gentrificação, de privatização de serviços públicos de proximidade, não ficamos inativos perante as alterações climáticas nem aceitamos a insensibilidade social. Procuramos responder às necessidades reais das populações, através de alternativas democráticas e socialistas, ensaiando novas formas de pensar o território e de construir comunidade.

Na organização interna local, o Bloco deve pautar-se pela autonomia das concelhias, pela promoção de mecanismos democráticos de alta intensidade, pela construção de espaços de debate igualitários que ultrapassem o tarefismo.

9- Desfazer os nós do trabalho, unir os pontos do sindicalismo
O sindicalismo continua a perder força e representatividade com muitas dificuldades de renovação ou de encontrar formas de contrariar a atomização de classe e a perda de referenciais de luta.

Neste contexto, é imperativo pensar a organização sindical resgatando-a das suas paralisias: democratizando-a com horizontalidade; ultrapassando as lógicas das burocracias sindicais, tantas vezes afastadas do dia-a-dia de trabalho; abrindo-a a pessoas desempregadas e precárias, incentivando a ação unitária entre diferentes setores de atividade e pensando à escala internacional.

Para o Bloco, o ativismo no mundo laboral é fundamental. Aí favorecerá a unidade em torno de processos de luta, a decisão informada, a democracia de base e a articulação das lutas, a coordenação da intervenção sindical com as necessidades das comunidades e o trazer as reivindicações anti-austeritárias para a luta laboral. É necessária uma coordenação entre movimentos e sindicatos que junte as questões económicas às questões políticas e que possa construir uma frente anti-austeritária (e anti-capitalista e abertamente ecologista) que seja capaz de alargar lutas e protagonismos e inverter a relação de forças entre capital e trabalho.


10– A esquerda será insubmissa ou não será
As conquistas parlamentares para que o Bloco contribuiu não chegam para a multiplicidade de ataques de que tantas de nós são alvo. Estamos a ser espetadores das realidades não-binárias, sem políticas de fundo que respondam às necessidades destas realidades. As pessoas trans e não-binárias vivem no espectro da ultraprecarização, nomeadamente nos serviços públicos, onde as suas identidades são ignoradas ou nem existem. O processo de transição só é aplicável ao cis-tema binário e é demasiado longo, obrigando muitas pessoas trans a escolher entre os privados e discriminação contínua e, muitas vezes, mortal, das suas vidas. É tempo do Bloco se assumir, não apenas nas palavras, mas também nas suas ações, como um partido transfeminista que toma consciência plena da realidade precária das pessoas LGBTIQ+ e que cria, no parlamento e nas ruas, ferramentas para esta luta. Também no campo do anti-racismo é preciso aprofundar a passagem das palavras aos atos, dando voz e espaço a novos protagonistas e fazendo a crítica radical do colonialismo e da forma como ele é encarado em Portugal. Ser a esquerda socialista que combina o reconhecimento da diferença com o combate pela supressão de todas estas categorias e a abolição de todas as formas de submissão e exploração é o desafio que o Bloco tem de abraçar.


11- Aprender com os erros, funcionar melhor

Recebemos a herança da mitologia do revolucionário profissional que abdica de tudo na vida pela causa. Mas também a da crítica aos processos de burocratização no interior dos partidos e da defesa de uma democracia radical. A questão é o que fazer de tudo isto hoje nas condições atuais da sociedade e de um partido anti-capitalista.

E como responder aos graves erros cometidos pela direção do Bloco no caso dos despedimentos recentemente denunciados na comunicação social.

No passado recente, o partido implementou e desistiu de um modelo de contratação por concurso para afastar o espetro das contratações por grupos de amigos ou fações no interior do partido.

Contudo, isso reproduziu muitas das práticas anteriores e nenhuma lição foi tirada. E é preciso tirar lições. Sobre isso e sobre muito mais. Sobre os privilégios que implica para quem a comanda haver uma estrutura profissional, sobre os perigos da profissionalização política prevalecer sobre os espaços de militância, sobre a reprodução no interior do partido da divisão do trabalho, das desigualdades salariais e estruturas hierárquicas, sobre carreiras e como o trabalho político pode ser também um privilégio ao alcance de poucas pessoas e de pessoas de certas camadas sociais ou então como se torna uma dependência com consequências políticas e na vida, como condiciona todo um percurso de vida, sobre condições de trabalho e como de certas formas trabalho e militância se podem misturar num cocktail explosivo ou numa realidade esgotante. Sobre tudo isto e muito mais. Há uma fragilidade imensa num partido dependente para o seu funcionamento de resultados eleitorais. Condiciona modos de funcionamento e até estratégias políticas. Há uma dificuldade estrutural em construir e fazer crescer um partido suportado sobretudo pelo auto-financiamento militante. Há uma forma dominante de fazer política que implica determinados gastos, com tudo o que isso implica. Estas são questões estruturantes num projeto político e as respostas não são factos adquiridos.

E, para além de outras consequências, e dos aspetos humanos da questão dos despedimentos no Bloco que não são de somenos importância, tudo isto implica que o partido se repense profundamente. Um amplo processo de debate sobre isto deverá ser lançado desde já. E deve ter consequências de cima a baixo no partido.

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